“O Homem é o único ser vivo que sabe que é mortal”. É neste pensamento do filósofo francês Gabriel Marcel que tudo tem o seu início. Por o Homem ter este conhecimento, esta noção de ser finito, de um dia o seu corpo ser desprovido de vida tal como ele a conhece, que desde sempre a morte é para ele algo inquietante. Sendo inevitável, a morte tem sido também um tabu. Representada de diversas formas assustadoras ao longo dos anos de existência humana, a morte tem sido usada pela Igreja para exaltar a necessidade de praticar o bem durante a vida, pois caso contrário a terrível morte chegará e com ela o “inferno” e o “sofrimento eterno”.
Mais do que o medo da morte o homem desde sempre demonstrou medo de uma morte sem honra, de uma morte indigna, de uma má morte, procurando de diversas formas a boa morte. Há diversos exemplos dessa ânsia de uma morte honrosa nos povos guerreiros ancestrais: o soldado guerreiro queria morrer em combate e pela espada, o gladiador queria morrer na arena, o samurai praticava o suicido para recuperar a honra após uma derrota. No entanto, nenhum queria verdadeiramente morrer, mas como sabia que esse desfecho era inevitável, procurava uma morte honrosa e digna, tudo para que, e como escreveu Dante - “un bel morire tutta la vita onora” - honrar toda a vida com uma bela morte.
Mas… Ao longo dos tempos o significado de “boa morte” tem variado. Na era em que actualmente nos inserimos, esta procura de uma morte digna reveste-se de uma ideia diferente. Surge actualmente o medo da dor e do sofrimento na hora da morte quando esta se afigura inevitável (porque temos consciência e sabemos que vamos morrer), e com ele a ânsia de uma boa morte. Continuamos a não querer morrer, mas já que o vamos, e sabemos que sim, que seja sem dor e sofrimento. É na procura de uma forma de controlar a dor intratável, incontrolável, experienciada segundo alguns por certos doentes terminais, que surge a eutanásia. Do Grego “boa morte”, a eutanásia tem sido apresentada como a “morte pela espada” dos doentes terminais, a morte digna daqueles que têm meses de vida. A eutanásia na sua definição significa matar um indivíduo a pedido deste, ou seja, uma morte a pedido. Este pedido é de extrema importância, pois é ele que retira à eutanásia o significado de homicídio.
"As pessoas não são donas, mas antes usufrutuárias da sua própria vida."
Pio XII
Uma vez que medicamente não há realmente dor física intratável, pois seja com medicamentos, cirurgia ou outros procedimentos invasivos, toda a dor física é tratável, a defesa da eutanásia tem-se centrado na autonomia do indivíduo. “A vida é minha e faço dela o que quero!”. Será? Seremos nós totalmente autónomos? A morte não é um acontecimento individual mas sim social. Nós não somos individuais, estamos inseridos numa sociedade e tudo o que fazemos tem repercussão na vida de outros. Ao morrermos influenciamos os nossos familiares, os nossos amigos, os nossos vizinhos, os nossos clientes, os nossos inimigos, os nossos colegas e aqueles que um dia nos iriam conhecer. A morte deixa um rasto! Fernando Pessoa escreveu “desde ontem a cidade mudou, por ter morrido o Alves da tabacaria”. Da mesma forma que “a nossa liberdade termina onde começa a liberdade do próximo”, talvez seja de pensar que a nossa autonomia também seja limitada pela dos que nos rodeiam. Poderá ser egoísmo colectivo, mas o contrário também poderá ser egoísmo individual. Não sei…
Pio XII afirmou que “as pessoas não são donas, mas antes usufrutuárias da sua própria vida”. Walter Osswald escreve que a vida é um bem gratuito, um dom que nos foi dado e apenas nos cabe fazer dela o melhor. Ninguém pediu para nascer, ninguém foi autónomo no momento de nascer. A vida foi-nos dada sem que nos pedissem opinião! Se assim foi com a vida porque razão deverá ser diferente com a morte? Se não podemos dar vida, porque poderemos dar morte? Mais uma vez dá que pensar…
A grande maioria dos pedidos de eutanásia são pedidos de ajuda.
Mas é importante pensar quais as razões que levam alguém a pedir para morrer. Estatisticamente os verdadeiros pedidos de eutanásia são raros. A grande maioria dos pedidos representam um pedido de ajuda, um pedido de atenção, um pedido de carinho. A fase terminal é acompanhada de dor e sofrimento, representando ambas uma experiência desagradável. É certo que não há dor intratável, no entanto há sofrimento sem dor. Este é representado no doente terminal pelo medo da perda, o medo de se tornar incapaz, o medo de ficar dependente nas suas mais básicas actividades diárias (higiene, alimentação, uso de fraldas) sendo isso humilhante, o medo de perder a sua imagem, o medo de ser um fardo para a sua família e amigos. São estas as principais razões que levam os doentes terminais a repetir por diversas vezes “se é para andar assim mais vale morrer” ou “não fico cá a fazer nada”. Perante este apelo, a sociedade evoluída e com bons princípios não deve ficar indiferente e deve agir. Como? Demonstrando-lhe que é uma pessoa valiosa, acarinhada, honrada, estimada por muitos, e que sempre estará acompanhada. É importante descentralizar a doença e torna-la periférica, indo ao encontro da ideia de Cecily Saunders, assistente social criadora da primeira unidade de cuidados paliativos (St. Christopher Hospice), “a pessoa está doente, não é um doente”. Tudo servirá para manter a dignidade do ser até ao fim da sua vida, e se isto for feito com honestidade e compaixão o doente terminal recuperará o sentido da vida, e poderá caminhar para uma boa morte, uma morte acompanhada e digna. Evitando uma eventual morte despersonalizada e isolada por eutanásia, personalizada no indivíduo desconhecido que no final a praticará. Será isto uma “boa morte”?
Uma outra forma em que nos surge a eutanásia é o suicídio assistido. A diferença é que neste caso o médico apenas fornece ao doente terminal o meio para este se poder matar, não sendo o médico que directamente lhe tira a vida. Por exemplo, prescrever medicamentos que possam por fim à vida, mas tem de ser o doente a tomá-los. O suicídio assistido é mais difícil de aceitar. O nosso instinto natural é o da preservação da vida, o da auto conservação, o Homem, tal como todos os seres vivos, não está programado para pôr termo à sua vida. É por este motivo, que em situações extremas onde a vida está em risco iminente que qualquer ser humano se pode transfigurar e fazer coisas que nunca pensaria ser capaz. De facto, mais de 95% das tentativas de suicídio se devem a depressões, e após terem passado por essa experiência e terem sido salvos, os indivíduos agradecem ao profissional de saúde o ter lutado pela sua vida. Significa isto que o suicídio está associado frequentemente a problemas psíquicos e não a sofrimento extremo ou dor intratável, sendo um sinal de que a pessoa precisa de ajuda. Para apoiar esta teoria temos a taxa incrivelmente insignificante de suicídio nos campos de concentração nazis, onde certamente o suicídio assistido seria extremamente fácil de obter.
Após a Segunda Grande Guerra não mais se falou de eutanásia. Porquê? A "rampa escorregadia" é um fenómeno temido.
Do Regime Nazi surge um outro dado interessante e assustadoramente actual. Walter Osswald no seu livro “Sobre a Morte e o Morrer” aborda este tema de uma forma simples, crua, real e tenebrosa, mostrando até onde pode ir o Homem na sua maldade. Nos anos 20 surgiu um livro intitulado “A autorização para a destruição de vidas indignas de ser vividas” da autoria dos Professores Binding e Hoche (jurista e psiquiatra), onde se defendia a eutanásia voluntária e se introduzia a eutanásia involuntária. Este termo assustadoramente perigoso falava de vidas que não valendo a pena de ser vividas deviam ser eliminadas. Esta ideologia foi levava ao extremo pelos Nazis, que rapidamente passaram dos dementes, dos deficientes, dos incapazes, dos de carga social elevada, para as prostitutas, vagabundos, homossexuais, ciganos e judeus, entre outros seres ditos “associais”, cujas vidas eram “indignas”. As crianças não passaram ao lado, e começando com a morte de um recém-nascido cego e deformado, calcula-se que em 1941 até 10000 crianças tenham sido assassinadas porque a sua vida não era digna de ser vivida. A eutanásia voluntária tinha rapidamente levado à eutanásia involuntária. De certa forma isto foi a base do Holocausto. Porquê que acham que após a Segunda Grande Guerra não mais se falou de eutanásia até aos dias de hoje?
O termo “rampa escorregadia”, no qual de uma ideia se parte rapidamente para outra, está presente em todo o processo de legalização da eutanásia na Holanda e Bélgica. De uma eutanásia voluntária para doentes terminais rapidamente se está a passar para a autorização da eutanásia involuntária, a morte a pedido da família ou amigos e não do doente. Com o argumento que “se o doente fosse capaz de dizer quereria morrer”, tem sido autorizada pelos tribunais a eutanásia, inclusivamente a crianças. Deixou de haver uma necessidade de pedido de morte pelo doente para bastar o pedido de um familiar, que acha que “aquela vida não merece ser vivida”. Não estaremos neste caso perante um homicídio encapuzado? Talvez por esta razão, por esta rampa escorregadia, que diversos países não seguiram o caminho da Holanda e Bélgica, e mantêm o receio e o medo de autorizar a eutanásia em casos específicos de doentes terminais.
Uma "boa vida" será uma "boa morte".
Não podemos, no entanto, aceitar a atitude de alguns médicos do “dar tudo por tudo”, do acto glorioso de tentar por todos os meios manter a vida. Há situações terminais onde clinicamente a aplicação de determinadas atitudes terapêuticas em nada vão alterar o curso da doença, e apenas vão prolongar o sofrimento, físico e psíquico. O acto glorioso transforma-se num acto de tortura. Estaremos a oferecer ao doente terminal uma má morte, uma distanásia. A medicina não existe pura e simplesmente para prolongar a vida, existe para melhorar a qualidade de vida e se possível prolongar a mesma. Quando indicado é medicamente correcto apenas usar medidas paliativas, como analgesia e sedação terminal, e deixar a doença correr o seu curso natural. Deixar morrer não é matar. Surge assim a ideia de ortotanásia, situada na virtude do meio entre distanásia e eutanásia.
Por tudo o que atrás escrevi, penso existirem dados morais, médicos, sociais e políticos para temer a legalização da eutanásia. Toda esta temática surge, como referido no início desta publicação, do facto de o ser humano ter consciência que vai morrer, de ser finito. Caso contrário ninguém pensaria em eutanásia, pois o Homem (tal como todos os seres vivos) tem o instinto de proteger a sua vida e não de a tirar. Os médicos têm o dever de proteger a vida, e acima de tudo preservar e melhorar a qualidade da vida que vivemos. Uma boa sociedade tudo deve fazer para que doentes terminais em sofrimento possam ganhar um novo sentido da vida, e assim esquecer o desejo de uma boa morte através da morte. Uma “boa vida” será uma “boa morte”.
Dr. Carlos Eduardo Costa Almeida
Cirurgião Geral
https://retalhosdevidacirurgiao.blogspot.com/2020/02/a-eutanasia-palavra-eutanasia-deriva.html
Há realmente muito que se lhe diga, há muito a dizer, a discutir. Não é com certeza um assunto tão linear como alguns menos avisados acreditam, ou querem acreditar. E fazer crer. Talvez por isso a eutanásia voluntária seja aceite em tão poucos países, já que a involuntária - a tal "história negra" que se teme que se possa repetir - é actualmente vedada por lei em todos, com algumas escapatórias que já dão que pensar. Não me parece que alguém que morra a pedido, e seja morto, por já não aguentar o sofrimento, psicológico ou físico. morra satisfeito e em paz. Não creio que matar alguém seja na verdade uma boa maneira de lhe dar uma boa morte. Talvez nalguns…
https://www.publico.pt/2020/02/15/politica/opiniao/eutanasia-autonomia-liberdade-1904258
https://www.publico.pt/2020/02/15/politica/opiniao/eutanasiar-politiquice-portuguesa-1904167
https://expresso.pt/opiniao/2020-02-12-Eutanasia.-A-decisao-mais-importante-da-nossa-vida--por-Alexandre-Quintanilha-
já escrevi muito sobre isto... e concordo contigo em tudo e concordo com quem diz o contrário.. parece estranho não é?
... " há muito mais histórias e tragédias, e limitações do conhecimento da ciência e da perícia que nos impedem de morrer serenos. Há dores que os médicos não travam, há cancros expostos e sangrantes, impúdicos, sem clemência. E há sofrimento que pessoas fora destas vidas nunca viram e nos moldam a cabeça, nos infernizam as noites, nos desgraçam as emoções. Por isso há eutanásia desde sempre, escondida, sufocada entre pessoas e famílias e técnicos de saúde. Mas se despenalizarem a decisão e lhe criarem processos de rotina, formas administrativas de a requerer e decidir, parece estranho. Talvez que…